segunda-feira, outubro 26, 2009

CRENÇAS E VALORES

“Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém”.
(São Paulo)



Nos últimos dias se comentou muito sobre o caso de uma criança de 9 meses, Glória, que morreu em 2002 de septicemia, infecção grave. A criança tinha eczema infantil, uma manifestação alérgica de sua pele. Em crianças, a tentação da coceira acaba gerando feridas e as deixam vulneráveis a infecções. Há tratamento holopático. Seu pai, um médico homeopata, insistiu em tratar a criança com homeopatia até o último momento. Quando a levou para um hospital, tinha infecções internas e externas, as bactérias estavam destruindo inclusive seus olhos. A criança de 9 meses desencarnou em meio grande sofrimento e os médicos só puderam ministrar morfina para aliviar a dor.
O pai e a mãe foram levados à Justiça australiana e foram condenados por homicídio. Ele por negligência e ela por conivência.
Richard Dawkins colocou o caso no seu sitio na internet e logo se sucederam ataques à homeopatia, feitos pelos seguidores de Dawkins, geralmente tão fundamentalistas quanto o próprio biólogo ateu.
Em um primoroso artigo, Contardo Caligaris criticou ambos. Os pais e os exaltados seguidores do biólogo, pelo fundamentalismo de ambos, pela prepotência de certezas.
Disse que se precisasse salvar uma filha, faria de tudo, teria convocado os homeopatas (aliás, reconhecidos como especialistas em medicina), os xamãs, feiticeiros e curandeiros minimamente confiáveis. E embora se confesse agnóstico, “rezaria, sem nenhuma vergonha e sem sentimento de trair minhas “convicções’, pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo do que minha razão alcança”.
A abordagem de Contardo traz-nos uma lição importante, geralmente desprezada, porque de tão imperceptível nos confunde. É saber sopesar crenças e valores. Ambos estão estreitamente ligados, um define o outro. Contudo, há certas situações em que um deve ser sacrificado para salvaguardar outro, mais importante naquele determinado caso ou momento.
A crença na homeopatia – crença da qual comungo – sacrificou o valor dignidade da pessoa humana e a sacralidade da vida. Era pra ter sido justamente o contrário. Em prol da defesa da dignidade da pessoa humana e da vida, a crença na homeopatia deveria ter cedido lugar para preservação daquilo que era mais importante naquele momento. Salvar a vida da criança – e ainda mais da filha - não podia esperar, a crença no poder de cura da homeopatia podia esperar, ser novamente testada, outra vez comprovada. Salvar aquela vida não.
O homem bomba acredita que ao se explodir em martírio, garante uma vaga no paraíso. Esta crença é motivada por alguns valores implícitos, tais como renúncia, sacrifício, fé. Contudo, sua crença sacrifica valores que são inegociáveis, essenciais a qualquer pessoa e sociedade. Quando ele se explode a machuca ou mata pessoas, sua crença revela-se uma agressão a valores que não poderiam ser agredidos.
O homem que se crer superior a outro cultiva valores como a prepotência, nega a igualdade, crer-se privilegiado, melhor. Quando sua crença está restrita à sua mente, menos mal, porque mal só faz a si mesmo. Quando ela se exterioriza em palavras e atos, esta crença maltrata valores fundamentais a todo ser humano.
A crença no nacionalismo já motivou muitas potências militares a invadirem países pobres, por interesses econômicos ou políticos, e sob tal estandarte promoveram a barbárie, a tortura, a opressão.
Há também o contrário, onde valores impõem o fim de crenças. Vejamos o que está acontecendo com a globalização da cultura ocidental. Centenas de línguas, de rituais, de lugares sacros, de tradições que representam valores de sociedades e comunidades locais estão sendo extintas rapidamente, pela imposição implícita de novos valores. É uma invisível, mas incontestável forma de opressão e de holocausto.
Valores como a liberdade também tentam justificar que crenças equivocadas como a de que o aborto, a eutanásia e o suicídio são soluções satisfatórias para problemas pessoais. Da mesma forma, valores como a justiça tentam validar a pena de morte, a prisão perpétua e a tortura.
A vida em sociedade está repleta de crenças que impõem a valores de outras pessoas grandes estragos diários e vice-versa. O motorista que rotineiramente dirige bêbado, o estelionatário contumaz, o marido cafajeste, o político corrupto, o médico negligente, o advogado mentiroso, o traficante de drogas, todos comungam de crenças e valores comuns, como a da impunidade e da esperteza. Acreditam que podem fazer o que fazem e não serão punidos, se acham espertos. Na outra ponta estão as vítimas. A mãe grávida que esperava o ônibus e foi atropelada pelo motorista bêbado, o velinho aposentado que ficou sem remédios porque enganado pelo estelionatário, a esposa humilhada pelas sucessivas traições, os pobres que não têm hospitais dignos por causa do desvio de verbas públicas, a jovem que amputou a perna por negligência médica, o cliente que teve seus direitos prescritos por descaso do advogado e as mães que perderam seus filhos para drogas estão todos no outro lado, onde repercutem as crenças e valores dos outros.
O que tais pessoas não percebem é que tudo está interligado. O motorista bêbado que se acidentou pode ficar aos cuidados do médico negligente, em um hospital público sucateado pelo político corrupto, que por sua vez pode ter sua defesa judicial prejudicada pelo advogado mentiroso. Quando nossas crenças e valores tornam o mundo pior, ele fica pior para todos.
O caso do pai homeopata que levou sua crença ao extremo ao preço da vida da filha é diferente na forma dos casos citados acima, não na essência. Este não queria praticar um crime, tampouco desejava qualquer mal à sua filha. Mas na essência há um ponto em comum. Todos levam suas crenças ao extremo, mesmo quando isso impõe grandes prejuízos a outras pessoas ou a toda sociedade. Todos são extremistas e, por isso, são potencialmente perigosos.
O perigo não é a homeopatia, assim como não é a medicina ou a advocacia. Mas as crenças e valores que estão por trás de nossos atos, de nossas profissões, de nossas relações e escolhas. Principalmente quando estas crenças e valores não se submetem a dúvida, tornaram-se certezas absolutas.
A questão do conflito entre crença e valor permeia nossa vida em sociedade. De regra, nossos valores justificam nossas crenças e estas são influenciadas por nossos valores. Contudo, quando a crença ou o valor torna-se extremista e fundamentalista, é porque ele já deixou de ser algo defensável e pessoal e tornou-se algo a ser combatido por toda sociedade.
É como sempre digo, a principal guerra deve ser travada na mente, onde nascem e crescem nossas crenças e valores. Quando falhamos neste combate e permitimos que crenças perigosas e valores nocivos saiam da mente para o mundo externo e se consolidem como novas tendências e padrões de comportamento, pode ser tarde demais.