domingo, março 09, 2014

LIMITES DA LIBERDADE RELIGIOSA

“A tolerância é a caridade da  inteligência”
                                                                       (Jules Lemaitre)
                                  

Fui voluntário do Centro de Valorização da Vida – CVV, que trabalha com prevenção ao suicídio.
Um dos atendimentos mais marcantes que fiz foi de uma jovem (talvez pré-adolescente). Ela ligou porque estava arrasada, profundamente triste e desorientada. Informou-me que há alguns dias tinha recebido a notícia de que o demônio falava através dela. Que estava sempre com ela e, por isso, precisava se tratar. O pastor que lhe atendia era duro e rezava entusiasmada para afastar o “encosto”.
A jovem não tinha sequer vestígios de entusiasmo.
Tinha medo.
Não só.
Em verdade, estava péssima. Sentia-se culpada e confusa. Não entendia porque ela era porta-voz de uma figura tão nefasta. Queria entender porque tinha atraído o mal e este passara a fazer parte de sua vida.
Havia dias que não dormia, porque tinha medo, tristeza, sentia-se sozinha.
A mãe e o pastor rezavam, às vezes no seu quarto, e ela sentia medo de quem poderia estar ali presente, no âmbito do invisível. Era perturbador cogitar que depois ficaria sozinha, reclamava.
Sempre amou a Deus, mas se sentia injustiçada, miseravelmente abandonada às garras de forças que não conhecia e pelas quais não tinha qualquer tipo de afeição.
Como voluntário do CVV ouvi-a com atenção, usando de técnicas específicas, da teoria de atendimento chamada de centrada na pessoa, do brilhante e saudoso psicólogo Carl Rogers.
Na condição de voluntário da ONG e por dever de lealdade a seus princípios (dentre os quais de não seguir determinada religião) não podia falar sobre religião.  
Foi um atendimento difícil e de certa forma frustrante – porque não podia trabalhar aspectos da espiritualidade -, embora a jovem tenha desligado serena e mais equilibrada.
Não sei o que aconteceu nos meses e anos que se seguiram.
Ela nunca mais ligou no meu plantão e pouco tempo depois tive de sair do CVV por conta da assunção de compromissos profissionais.
Do ponto de vista espiritual, o caso apenas demonstra ignorância sobre o fenômeno mediúnico. Poderia ser abordado de outra forma, sem instigar medo, tristeza ou culpa na jovem. De qualquer forma, é a crença abraçada por ela. E é nosso dever respeitar.
Analisando jurídica e genericamente a questão, a postura do pastor está dentro do direito constitucional da liberdade de manifestação religiosa. A jovem – enquanto fiel – estava recebendo a orientação espiritual da religião que decidiu seguir (isto considerando que estava manifestando o desejo de assim fazê-lo, o que não ficou claro para mim).
Ou seja, se a pessoa resolve seguir determinada religião, em tese, concorda ou aceita submeter-se a seus ritos, crenças e manifestações de fé. Se não concorda, tem o direito de afastar-se.
Pois bem.
Situação bem diferente ocorre quando as manifestações de fé de determinada religião revelam-se agressivas e repletas de preconceitos e discriminações contra outras denominações religiosas e a seus fiéis.
A questão envolve pontos obscuros e polêmicos, que ganharam luzes em importante e recente atuação do Ministério Público Federal – MPF, após pedido de providências de entidade associativa ligada a religiões afrodescendentes.
Em fevereiro de 2014, o MPF expediu uma recomendação para que o Google retire do seu canal de vídeos Youtube vários vídeos que ostentam ofensas a tradições religiosas afrodescendentes. Dentre eles, o MPF lista:
·         Entrevista com encosto – demônio na criança sexta-feira forte ex macumbeira;
·         Ex-pai de santo se converte e aprende a sacrificar para o deus vivo;
·         Jovem ex-pai de santo manifesta um demônio na hora da Reconciliação;
Basicamente são vídeos de denominações evangélicas que associam crenças dessas tradições a ligações “com o demônio”. As principais vítimas são os fiéis do Candomblé e Macumba. Mas é comum que manifestações deste tipo ataque também o Espiritismo.
Juridicamente o foco do debate é o confronto de alguns princípios e garantias constitucionais fundamentais, tais como: a liberdade de expressão, a proibição de preconceito, discriminação e o respeito às manifestações religiosas.
A questão envolve algumas reflexões. Até que ponto um representante de uma religião tem o direito de atacar de forma hostil e contundente outra religião e seus crentes? Ele estaria protegido pela garantia constitucional da livre manifestação do pensamento e pela proibição do Estado intervir na organização e conteúdo das religiões?
Primeiramente é importante anotar que guardo respeito pelos evangélicos. A maioria das denominações evangélicas praticam suas crenças de forma digna e tem um caudaloso rol de serviços prestados à sociedade, sobretudo em favor de pessoas que foram dadas como “perdidas”.
Portanto, a minha posição não é de generalizar a crítica e de abominar nossos irmãos reformistas.
A questão é outra. E é imprescindível ajustar o foco para não desbordar para discussões estéreis. O exame passa por aferirmos até que ponto certas condutas tem proteção legal e constitucional e quando passam a categoria de ilícitos, por eventuais abusos.
Penso que o Ministério Público Federal foi muito feliz em sua recomendação.
Primeiro porque não há direito absoluto, mesmo aqueles que são considerados fundamentais por nossa Constituição.
Não se pode, portanto, sob o argumento de exercício de um direito fundamental violar de forma dura e sistemática outros direitos e garantias também fundamentais, como – no caso – o de respeito e tolerância por outras manifestações religiosas, o de proteção a toda forma de preconceito e discriminação.
O que se vê nesses vídeos é um ataque desrespeitoso a outras crenças e a seus fiéis, que são amplamente desqualificados como seres humanos, pois supostamente portadores de vínculos nefastos com o mal, com o que há de pior e mais repugnante.
A gravidade ganha robustez na medida em que estes vídeos servem como propaganda religiosa, como forma de espalhar o medo e atrair mais fiéis.
Em verdade, as falas desses vídeos podem tipificar facilmente violações a direitos humanos, inclusive a tratados internacionais em que o Brasil é signatário.
Portanto, dúvida não resta de que este tipo de manifestação da liberdade de expressão encontra limitação constitucional e, portanto, deve ser rechaçada, pois desrespeita ampla e gravemente outras crenças religiosas.
Sob qualquer ângulo que se analise estes vídeos são violadores da liberdade de manifestação religiosa, pois são opressivos, incitam a desigualdade, o preconceito e a discriminação, o que é peremptoriamente proibido por nossa Constituição Federal, pelo Estatuto da Igualdade Racial e por tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Na recomendação, o MPF fundamenta seu pedido no art. 3º e 5º, inciso XLI, da Constituição Federal. O primeiro que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. O segundo dispositivo constitucional ordena a punição de qualquer forma de discriminação atentatória dos direitos e garantias fundamentais.
Fundamenta sua recomendação também no Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) que no seu artigo 23 dispõe que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos.” Usa o art. 26 que visa coibir a utilização de meios de comunicação social para difusão de ódio ou ao desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas.
Por fim, remete ao art. 140, §3º, do Código Penal, que trata do crime de injúria, quando a mesma consiste na utilização de elementos referentes à religião.
No Espiritismo aprendemos que devemos respeitar todas as crenças. Que mesmo no confronto de idéias, o debate deve ser lhano, garbo, urbano, sem se deixar tentar pelo ataque e desrespeito.
Não se pode falar em desenvolvimento sadio da espiritualidade humana quando nossas práticas e falas machucam, humilham, desrespeitam e incitam à discriminação e ao preconceito.
É tempo de desenvolvermos a tolerância pela diversidade e refletirmos com a seguinte questão: será que somos tolerantes com a intolerância?
Ah, infelizmente até esta data (09.03.2014), os vídeos ainda estão disponíveis no Youtube.