“A tolerância
é a caridade da inteligência”
(Jules
Lemaitre)
Fui voluntário do Centro de
Valorização da Vida – CVV, que trabalha com prevenção ao suicídio.
Um dos atendimentos mais
marcantes que fiz foi de uma jovem (talvez pré-adolescente). Ela ligou porque
estava arrasada, profundamente triste e desorientada. Informou-me que há alguns
dias tinha recebido a notícia de que o demônio falava através dela. Que estava
sempre com ela e, por isso, precisava se tratar. O pastor que lhe atendia era
duro e rezava entusiasmada para afastar o “encosto”.
A jovem não tinha sequer
vestígios de entusiasmo.
Tinha medo.
Não só.
Em verdade, estava péssima.
Sentia-se culpada e confusa. Não entendia porque ela era porta-voz de uma
figura tão nefasta. Queria entender porque tinha atraído o mal e este passara a
fazer parte de sua vida.
Havia dias que não dormia,
porque tinha medo, tristeza, sentia-se sozinha.
A mãe e o pastor rezavam, às
vezes no seu quarto, e ela sentia medo de quem poderia estar ali presente, no
âmbito do invisível. Era perturbador cogitar que depois ficaria sozinha,
reclamava.
Sempre amou a Deus, mas se sentia
injustiçada, miseravelmente abandonada às garras de forças que não conhecia e
pelas quais não tinha qualquer tipo de afeição.
Como voluntário do CVV
ouvi-a com atenção, usando de técnicas específicas, da teoria de atendimento
chamada de centrada na pessoa, do brilhante e saudoso psicólogo Carl Rogers.
Na condição de voluntário da
ONG e por dever de lealdade a seus princípios (dentre os quais de não seguir
determinada religião) não podia falar sobre religião.
Foi um atendimento difícil e
de certa forma frustrante – porque não podia trabalhar aspectos da
espiritualidade -, embora a jovem tenha desligado serena e mais equilibrada.
Não sei o que aconteceu nos
meses e anos que se seguiram.
Ela nunca mais ligou no meu
plantão e pouco tempo depois tive de sair do CVV por conta da assunção de
compromissos profissionais.
Do ponto de vista
espiritual, o caso apenas demonstra ignorância sobre o fenômeno mediúnico.
Poderia ser abordado de outra forma, sem instigar medo, tristeza ou culpa na
jovem. De qualquer forma, é a crença abraçada por ela. E é nosso dever
respeitar.
Analisando jurídica e
genericamente a questão, a postura do pastor está dentro do direito
constitucional da liberdade de manifestação religiosa. A jovem – enquanto fiel –
estava recebendo a orientação espiritual da religião que decidiu seguir (isto
considerando que estava manifestando o desejo de assim fazê-lo, o que não ficou
claro para mim).
Ou seja, se a pessoa resolve
seguir determinada religião, em tese, concorda ou aceita submeter-se a seus
ritos, crenças e manifestações de fé. Se não concorda, tem o direito de
afastar-se.
Pois bem.
Situação bem diferente
ocorre quando as manifestações de fé de determinada religião revelam-se
agressivas e repletas de preconceitos e discriminações contra outras
denominações religiosas e a seus fiéis.
A questão envolve pontos
obscuros e polêmicos, que ganharam luzes em importante e recente atuação do Ministério
Público Federal – MPF, após pedido de providências de entidade associativa ligada a religiões afrodescendentes.
Em fevereiro de 2014, o MPF expediu
uma recomendação para que o Google retire do seu canal de vídeos Youtube vários
vídeos que ostentam ofensas a tradições religiosas afrodescendentes. Dentre
eles, o MPF lista:
·
Entrevista com encosto – demônio na criança
sexta-feira forte ex macumbeira;
·
Ex-pai de santo se converte e aprende a
sacrificar para o deus vivo;
·
Jovem ex-pai de santo manifesta um demônio na
hora da Reconciliação;
Basicamente são vídeos de
denominações evangélicas que associam crenças dessas tradições a ligações “com
o demônio”. As principais vítimas são os fiéis do Candomblé e Macumba. Mas é
comum que manifestações deste tipo ataque também o Espiritismo.
Juridicamente o foco do
debate é o confronto de alguns princípios e garantias constitucionais
fundamentais, tais como: a liberdade de expressão, a proibição de preconceito,
discriminação e o respeito às manifestações religiosas.
A questão envolve algumas
reflexões. Até que ponto um representante de uma religião tem o direito de
atacar de forma hostil e contundente outra religião e seus crentes? Ele estaria
protegido pela garantia constitucional da livre manifestação do pensamento e
pela proibição do Estado intervir na organização e conteúdo das religiões?
Primeiramente é importante
anotar que guardo respeito pelos evangélicos. A maioria das denominações
evangélicas praticam suas crenças de forma digna e tem um caudaloso rol de serviços
prestados à sociedade, sobretudo em favor de pessoas que foram dadas como “perdidas”.
Portanto, a minha posição
não é de generalizar a crítica e de abominar nossos irmãos reformistas.
A questão é outra. E é
imprescindível ajustar o foco para não desbordar para discussões estéreis. O
exame passa por aferirmos até que ponto certas condutas tem proteção legal e
constitucional e quando passam a categoria de ilícitos, por eventuais abusos.
Penso que o Ministério
Público Federal foi muito feliz em sua recomendação.
Primeiro porque não há
direito absoluto, mesmo aqueles que são considerados fundamentais por nossa
Constituição.
Não se pode, portanto, sob o
argumento de exercício de um direito fundamental violar de forma dura e sistemática
outros direitos e garantias também fundamentais, como – no caso – o de respeito
e tolerância por outras manifestações religiosas, o de proteção a toda forma de
preconceito e discriminação.
O que se vê nesses vídeos é
um ataque desrespeitoso a outras crenças e a seus fiéis, que são amplamente
desqualificados como seres humanos, pois supostamente portadores de vínculos
nefastos com o mal, com o que há de pior e mais repugnante.
A gravidade ganha robustez
na medida em que estes vídeos servem como propaganda religiosa, como forma de
espalhar o medo e atrair mais fiéis.
Em verdade, as falas desses
vídeos podem tipificar facilmente violações a direitos humanos, inclusive a
tratados internacionais em que o Brasil é signatário.
Portanto, dúvida não resta
de que este tipo de manifestação da liberdade de expressão encontra limitação
constitucional e, portanto, deve ser rechaçada, pois desrespeita ampla e
gravemente outras crenças religiosas.
Sob qualquer ângulo que se
analise estes vídeos são violadores da liberdade de manifestação religiosa,
pois são opressivos, incitam a desigualdade, o preconceito e a discriminação, o
que é peremptoriamente proibido por nossa Constituição Federal, pelo Estatuto
da Igualdade Racial e por tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Na recomendação, o MPF
fundamenta seu pedido no art. 3º e 5º, inciso XLI, da Constituição Federal. O
primeiro que estabelece como objetivo fundamental da República Federativa do
Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação.
O segundo dispositivo constitucional ordena a punição de qualquer forma de
discriminação atentatória dos direitos e garantias fundamentais.
Fundamenta sua recomendação também
no Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288/2010) que no seu artigo 23
dispõe que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos.” Usa o art. 26 que visa
coibir a utilização de meios de comunicação social para difusão de ódio ou ao
desprezo por motivos fundados na religiosidade de matrizes africanas.
Por fim, remete ao art. 140,
§3º, do Código Penal, que trata do crime de injúria, quando a mesma consiste na
utilização de elementos referentes à religião.
No Espiritismo aprendemos
que devemos respeitar todas as crenças. Que mesmo no confronto de idéias, o
debate deve ser lhano, garbo, urbano, sem se deixar tentar pelo ataque e
desrespeito.
Não se pode falar em
desenvolvimento sadio da espiritualidade humana quando nossas práticas e falas
machucam, humilham, desrespeitam e incitam à discriminação e ao preconceito.
É tempo de desenvolvermos a
tolerância pela diversidade e refletirmos com a seguinte questão: será que somos tolerantes com a intolerância?
Ah, infelizmente até esta
data (09.03.2014), os vídeos ainda estão disponíveis no Youtube.
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