“Temei
conservar-vos indiferentes, quando
puderdes ser úteis.”
(O
Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. XIII, item 17)
Penso que
uma das maiores demonstrações de amor é ofertar uma crítica sadia, construtiva,
com intenção de propor uma reflexão sobre o aperfeiçoamento de determinada
atitude.
Essa é a
minha intenção com este artigo: propor uma reflexão e estimular uma mudança de
postura do movimento espírita.
Como se
sabe, as eleições de 2014 entram para história do Brasil não apenas como as
mais acirradas, mas, sobretudo, serão lembradas pela virulenta hostilidade,
pela indigência ética, pelo debate superficial de temas de relevância nacional
e pela explosão do preconceito e do fundamentalismo.
Este
cenário deveria ter mobilizado a atenção e manifestação do movimento espírita.
Contudo,
salvo pontuais exceções, o movimento espírita silenciou, optou pela omissão diante
do contexto e dos fatos supracitados.
O Censo
2010 sobre as religiões seguidas pelos brasileiros realizado pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que os espíritas já beiram
os 4 milhões de brasileiros, isto sem contar os milhões de simpatizantes. Entre
2000 e 2010, os seguidores da doutrina espírita aumentaram 65%. Trata-se de
aumento considerável. Comparativamente com outras crenças, os espíritas possuem
as maiores proporções de pessoas com nível superior completo (31,5%) e taxa de
alfabetização (98,6%), além das menores percentagens de indivíduos sem
instrução (1,8%) e com ensino fundamental incompleto (15,0%).
Da
pesquisa do IBGE, nota-se, claramente, que os espíritas somam um número
relevante de eleitores, têm boa instrução educacional e são potencialmente
formadores de opinião.
Para além
de o Espiritismo nos ensinar uma fé racional e propor a reforma íntima como
centro de suas atenções, historicamente os espíritas são tidos como moderados,
conciliadores e tolerantes, até porque foram por longas décadas as principais
vítimas de perseguição e discriminação religiosa.
Ou seja,
os espíritas e o movimento espírita reúnem uma combinação de experiências, características
e virtudes que podem agregar conteúdo e propostas ao debate político.
Não
obstante isso, o tema política no movimento espírita segue – em pleno terceiro
milênio - como um insustentável tabu e, nesta condição, impede debates e
reflexões maduras sobre o assunto, que acaba invariavelmente apequenado,
reduzido a posições inflexíveis e arquivado na prateleira dos assuntos
proibidos.
Desejo,
neste despretensioso artigo, praticar a heresia de enfrentar este tabu, certo
de que nenhum confrade vai acusar-me de má-fé, de obsediado ou condenar-me ao
umbral.
Preliminarmente,
anoto a sequência de minhas considerações. Quero primeiro explicar porque
Kardec evitou tratar mais a miúde de política. Depois esclarecer o que devemos
evitar em política. Terceiro, explicitar qual minha visão sobre a importância
de um posicionamento sóbrio e maduro dos espíritas e do movimento espírita
sobre política. Por fim, encerrarei este artigo rascunhando um esboço superficial,
imperfeito e incompleto de alguns temas sobre os quais deveríamos nos
posicionar.
Iniciemos
com a posição de Kardec.
Emmanuel,
através de Chico Xavier, no seu livro A Caminho da Luz, chama atenção ao fato
de que Kardec reencarna em 1804, poucos anos depois da queda da Bastilha e da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão e apenas dois meses antes de
Napoleão sagrar-se imperador[1].
O mundo
entrava em um período de profundas renovações políticas, filosóficas e
jurídicas, mas também de guerras.
Quando
Kardec compilou a codificação espírita a humanidade experimentava a onda de
razão do Iluminismo, que dentre outras coisas separou o Estado da religião, até
então instituição central na vida política das sociedades.
Considerando
os abusos que a religião promovera na condução de assuntos políticos[2], o Estado laico revelou-se
uma das grandes conquistas da evolução política.
Naquele
contexto, era totalmente razoável Kardec querer distância da política.
Acertadamente,
sua prioridade foi focar sua pesquisa no desvelar do mundo espiritual, suas
leis e organizar suas descobertas de forma a fomentar uma espiritualidade
racional e que tivesse por escopo a reforma íntima.
Contudo, a
conduta de Kardec não deve ser interpretada como uma posição de refutação ou
desvalorização à política. A percepção mais adequada é de que ele – com sua
arguta inteligência – percebeu a sensibilidade daquele momento histórico
marcado pela força do Iluminismo e, sobretudo, tinha por alvo prioritário a
questão espiritual.
Não
obstante isso, Allan Kardec não foi omisso.
O livro
Obras Póstumas, no capítulo das “Aristocracias”, consigna um estudo sobre os
problemas e desafios religiosos, econômicos, sociais, culturais e políticos da
humanidade.
Kardec
respeitando a proposta Iluminista e aditando-a com sua visão espiritualizada,
apresenta sua previsão sobre o advento da futura aristocracia intelecto-moral,
no qual vislumbra um novo modelo de política, conduzida por lideranças que
detenham não apenas preparo intelectual, mas também sólidas virtudes éticas e
morais, que pudessem conduzir a humanidade nos complexos desafios da transição
planetária.
Portanto, a
distância asséptica que o Espiritismo mantém atualmente da política parece-me
um equívoco, que precisa ser amplamente debatido e revisto urgentemente.
Feito este
esclarecimento histórico, impõe-se passar para o segundo ponto, que é esclarecer o que devemos evitar
em política.
A atuação política que defendo
não é a de um projeto de poder, como defendem e fazem outras religiões.
Portanto, não defendo que os
espíritas fundem um partido político, nem se filiem a um (embora possam fazê-lo
no exercício de sua cidadania) e tampouco que o movimento espírita lance
candidatos oficiais para os cargos eletivos para falarem em nome do Espiritismo
e do movimento espírita.
Em verdade, não deve o espírita
se preocupar em ocupar cargos estratégicos no Estado – embora possa fazê-lo cônscio
de suas responsabilidades - ou desrespeitar a configuração constitucional do
Estado laico.
Sobre estes aspectos, o livro O
Consolador, de Emmanuel, recebido pela psicografia de Chico Xavier nos traz
importante anotação[3]:
“O espiritista sincero deve compreender
que a iluminação de uma consciência é como se fora a iluminação de um mundo,
salientando-se que a tarefa do Evangelho, junto às almas encarnadas na Terra, é
a mais importante de todas, visto constituir uma realização definitiva e real.
A missão da doutrina é consolar e instrui, em Jesus, para que todos mobilizem
as suas possibilidades divinas no caminho da vida. Trocá-la por um lugar no
banquete dos Estados é inverter o valor dos ensinos, porque todas as
organizações humanas são passageiras em face da necessidade de renovação de
todas as fórmulas do homem na lei do progresso universal, depreendendo-se daí
que a verdadeira construção da felicidade geral só será efetiva com bases
legítimas no espírito da criatura.”
Também não defendo que o
movimento espírita se posicione a favor deste ou aquele candidato, grupo
político e que muito menos suba em palanques. A questão não deve ser tratada
sob a ótica de ideologias políticas ou de política partidária.
Não, não é isso que defendo.
O que defendo é o debate, sob a
ótica espírita, de temas centrais à humanidade e o pertinente posicionamento
político lato sensu do movimento
espírita a respeito de tais temas.
Este é o terceiro ponto.
Consignado o respeito a quem
pensa diferente, mas entendo que é inaceitável a omissão dos espíritas e,
sobretudo, do movimento espírita sobre temas centrais do debate político.
É verdade que muitos espíritas,
individualmente, têm louvável conduta e participam ativamente da vida política
da nação, posicionando-se com respeito, racionalidade e ética.
Mas são iniciativas pessoais e
não suprem o vácuo deixado pela omissão do movimento espírita.
Há, por certo, um elogiável
cuidado para que se evite que pessoas usem instituições e a doutrina espírita
como mote para auferir vantagens políticas e eleitorais.
Trata-se de um zelo fundado e razoável,
mas que tem sido levado ao extremo, revelando-se inflexível dogma, que deve ser
repensado urgentemente.
O termo política é polissêmico e
aberto. Por isso, abriga várias interpretações e usos. Não obstante isso,
pode-se afirmar que, de um modo geral e na sua acepção clássica, política é a
arte de administrar o bem comum.
Neste sentido, não me parece razoável
o movimento espírita ser omisso, sobretudo em um momento tão importante para o
país e para humanidade, que enfrenta desafios globalizados e crises graves,
cumulativas e convergentes, dentre as quais o crescente relativismo moral e o fundamentalismo
materialista, político e religioso.
Como aceitar que um segmento tão
importante da sociedade simplesmente cale, fique omisso e torne-se um
indiferente espectador diante de tudo isso?
Como construir um mundo de
regeneração se no curso da grande transição planetária preferimos o sofá para
nos agasalharmos como ilustres espectadores de grandes debates públicos?
Primeiramente, convém lembrar a
questão 766, do Livro dos Espíritos. Vejamos:
766 - A vida social está na Natureza?
Certamente. Deus fez o homem para viver em sociedade.
Portanto, a opção por isolar-se
apenas no estudo da doutrina é um erro. Temos de sair da bolha “transcendental”
e interagir com os desafios postos pela vida em sociedade.
Por outro lado, não basta que o
espírita não faça o mal. É preciso agir proativamente. Ter atitude. Impõe-se
participar efetivamente dos grandes desafios da humanidade. Jesus já dizia que
quem com ele não somava, espalhava. Não fazer o bem, não participar das lutas
por um mundo melhor, não se posicionar é ser conivente com o mal.
Kardec,
no Cap. XVI, item 7, do Evangelho Segundo o Espiritismo, elucida: Com efeito, o
homem tem por missão trabalhar pela melhoria do planeta.
A questão 573, do Livro dos Espíritos complementa o entendimento:
573. Em que consiste a missão dos Espíritos encarnados?
“Em instruir os homens, em lhes auxiliar o progresso; em lhes melhorar as
instituições, por meios diretos e materiais (...)”
As questões 642 e 932 do Livro
dos Espíritos reforçam minha convicção. É ler:
642. Para
agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique
o mal?
“Não;
cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo
mal que haja resultado de não haver praticado o bem.”
932. Por
que, no mundo, tão amiúde, a influência dos maus sobrepuja a dos bons?
“Por
fraqueza destes. Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos.
Quando estes o quiserem, preponderarão.”
Estas questões do Livro dos Espíritos
estão alinhadas com a clássica afirmação do líder negro Martin Luther King: “O que me assusta não são as ações e os gritos das pessoas
más, mas a indiferença e o silêncio das pessoas boas.”
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