quarta-feira, outubro 11, 2006

As Várias Dimensões de Maria - Parte 1



“O charme da história e sua lição enigmática consistem no fato de que, de tempos em tempos, nada muda e mesmo assim tudo é completamente diferente.”
(Aldous Huxley)



No segundo domingo de outubro, Belém do Pará comemora o Círio de Nazaré. Para muitos é o “Natal dos paraenses”. Cerca de 2 milhões de pessoas – segundo algumas estimativas – saem às ruas da metrópole da Amazônia para render devoção à Maria. É uma festa que já ganhou proporções e dimensões que desbordam do aspecto unicamente religioso, mexendo com a vida cultural, política e econômica do Estado.
No dia 12 de outubro, comemora-se o dia da “Padroeira do Brasil”. É a vez do Santuário de Aparecida, em São Paulo, ser invadido por uma multidão de devotos, vindos de todas as partes do país. Embora a Constituição Federal afirme que o Estado é laico, no referido dia é inclusive feriado nacional, para católicos e não católicos.
Em verdade, o culto mariano é um fenômeno mundial dentro do Catolicismo, que, a rigor, deve a este culto importante contenção da evasão de fiéis que se desgarram da Igreja rumo a outras religiões e crenças.
Diante de um fenômeno de grandes proporções como este e, de regra, mal explicado, resolvi colaborar com algumas informações visando lançar luzes esclarecedoras sobre o assunto, sem pretensão de esgotá-lo, porque muito rico e complexo.
Por que, como e quando Maria se tornou essa força poderosa dentro do Cristianismo? O atual culto à Maria sofreu influências de outros credos religiosos? Maria é a Mãe de Deus ou de Jesus? E os aspectos miraculosos da gravidez e nascimento de Jesus? Afinal, Jesus foi filho unigênito (único) ou primogênito (primeiro)? Qual a missão espiritual de Maria?
Essas entre outras questões serão abordadas em dois artigos, que trarão percepções e dados sobre aspectos históricos, antropológicos, psicológicos, exegéticos, religiosos, culturais, sociais e espirituais referentes à Maria, que compõem o que chamei de as várias dimensões de Maria. Por fim, registrarei a visão espírita sobre a mãe de Jesus.
Preliminarmente, cumpre anotar que tanto nos evangelhos canônicos como na literatura que vai até o século II, raras são as informações sobre Maria, que surgem a posteriori, em registros muitas vezes contraditórios, consignados em textos apócrifos. Dá-se a forte impressão de que Maria foi deliberadamente ocultada dos evangelhos. Mais que isso, talvez algumas informações tenham sido adaptadas às necessidades do Cristianismo Primitivo. Vale registrar, que todos os evangelhos só foram escritos décadas depois da morte de Jesus, quando o Cristianismo – então seita suburbana - engatinhava. Portanto, qualquer perfil de Maria é incompleto e só tem maior densidade se construído cruzando dados de diversas áreas do conhecimento, com cautela e sensatez.
Mas o que está por trás da ocultação e dos mistérios relativos à figura de Maria? Para entender, cumpre voltar no tempo e contextualizar a questão.
A vida da mãe de Jesus é envolta em polêmicas. Uma delas se refere à fecundação e virgindade de Maria. Tema sutil e passional, mas que traz importantes indícios que permitem aos estudiosos uma melhor compreensão quanto à gênese do culto mariano.
Mas afinal Maria concebeu virgem?
Em prelóquio, relevante destacar que narrativas sobre nascimentos sobrenaturais de personagens espirituais e mitológicos não são incomuns. Dentre os famosos filhos de virgens, destacam-se Crisna, Salivahana e Lao-Tse. A mãe de Buda foi fecundada, em sonho, por um elefante (que na tradição asiática representa pureza). Segundo a tradição mazdeana, a mãe de Zoroastro, o lendário legislador persa, foi penetrada por um raio divino. Na mitologia greco-romana, Atená nasce da cabeça de Zeus; Afrodite e Vênus nascem da espuma do mar, assim como Apolo, o herói Hércules, o Deus Mitra, entre tantos outros; na mitologia celta, o bardo Taliesin nasce de um grão e Merlin de uma virgem.
Deve-se ter presente que a virgindade à época de Jesus era muito apreciada e para melhor entender isso se deve retornar no tempo e buscar compreender o culto à Grande Deusa Mãe. Na pré-história, que se estendeu por milênios, havia verdadeiro culto ao sagrado feminino. Naquela época o homem desconhecia sua participação na fecundação. Pensava-se que o poder da vida estava com a mulher e, por isso, ela era ligação e a própria manifestação do divino, da pureza que, aos poucos, foi associada à virgindade. A partir do Neolítico, o homem descobriu sua importância na fecundação e houve progressiva perda de importância da mulher na sociedade, que se firmou como patriarcal, mas resíduos culturais que associavam pureza e virgindade atravessaram as gerações através, por exemplo, do paganismo.
Portanto, para nos aproximarmos da exata configuração do atual culto mariano, impõem-se voltar, novamente, ao momento em que o Cristianismo deixava de ser mera seita clandestina para tornar-se a religião oficial do Império Romano.
Ora, como Império, Roma dominava vários territórios com culturas diferentes. Mas, basicamente, sobrelevava-se o paganismo, que se caracterizava por diversos cultos pagãos a vários deuses, como os de Roma, da Grécia e do Egito, entre outros. Com o Concílio de Éfeso – que em 381 tornou o Cristianismo a religião oficial do Império – não se deu o fim automático do paganismo. Não se muda de uma hora para outra a crença de uma população. Muitos cultos permaneceram, templos funcionavam e expressiva parte de filósofos, advogados e da aristocracia romana ainda mantinha sua tradição pagã. Com o passar do tempo, muitos elementos pagãos se entronizaram na crença do Catolicismo nascente.
No livro Os Deuses eram Astronautas (Editora Nova Era), o pesquisador Erick Von Daniken explica que o culto a Maria como a “Mãe de Deus” não existia no início do Cristianismo e assim foi até o Concílio de Éfeso, em 431, quando por pressão de Roma – implantou-se o culto à Maria como “Mãe de Deus”. O objetivo era político. Como Éfeso era o centro do culto à Deusa Mãe Ártemis, quis-se atrair e unir em torno de Maria católicos e pagãos.
Há, portanto, no culto à Maria clara ligação com o culto à Deusa Mãe pagã ou Magna Mater, codinome também usado para identificar, contemporaneamente, Maria. Nisso, importante dizer, não há nenhum demérito. Vale explicar que o culto à Deusa Mãe era a veneração do sagrado feminino, enquanto expressão de pureza, fertilidade, prosperidade, proteção, tal como se dá hoje em relação ao culto mariano. O culto à Deusa Mãe foi, para muitos estudiosos, a primeira manifestação religiosa organizada da humanidade, o que liga, simbolicamente, Maria novamente ao ato criador puro.
Prova incontestável da relação entre tais cultos está justamente na liturgia, festas e sacramentos católicos. Veja-se que o culto a imagens, como a de Maria – inexistente no Cristianismo Primitivo – é de origem pagã. Rituais de iniciação e purificação, também têm gênese pagã e se transmudam, no Catolicismo, para ressurgirem como sacramentos. O culto a várias Nossas Senhoras – cada uma com poderes específicos - é, noutra roupagem, o culto às várias deusas que existia no paganismo.
Nisso, insisto, não há qualquer depreciação. Não se está aqui querendo diminuir o culto mariano, nem muito menos atacá-lo, o que seria abominável. Estamos apenas fazendo uma recomposição às origens históricas e religiosas do culto mariano, para podê-lo melhor compreender.
Ainda nessa perspectiva, muitas festas católicas dedicadas à Maria têm origem em festas similares pagãs e são comemoradas no mesmo dia de antigas festas pagãs. A festa da Candelária ou da Purificação da Santa Virgem tem como comemoração irmã a festa pré-cristã das luzes. As comemorações à Santa Brígida têm por referência a festa pagã de purificação chamada Imbolc, ofertada à deusa Brigit. A festa de Assunção ao Céu também conhecida como Dormição da Virgem era comemorada, na Palestina e Síria, no dia 15 de agosto, mesma data da comemoração da festa pagã oferecida à Hécate e à deusa romana Diana. A própria festa da natividade ou natal, que é comemorada no dia 25 de dezembro, coincide com a festa pagã do Sol Invictus ou da natividade do Deus do Mitraísmo.
Alguns ritos e costumes atuais parecem ter ligação com tais festas. Nas festas pagãs, eram comuns as procissões e, nestas, o uso de fogos e tochas, como ainda hoje se vê. O sacrifício físico também tem origem antiga. Já alguns termos usados em referência à Maria são um pouco mais jovens, embora nem tanto. Foi na Idade Média, por exemplo, que surgiu o costume de chamar Maria de Nossa Senhora. Na verdade, trata-se de uma criação da aristocracia feudal para elevar Maria – cujo nome remetia mais a simplicidade da dona de casa palestinense do que às damas cortesãs – à condição social mais respeitável aristocraticamente, surgindo daí as denominações de “Nossa Senhora” e “Madona”. Já a adjetivação de “Mãe de Misericórdia” surge, também na Idade Média, mas face os grandes períodos de sofrimento causados pela Guerra dos Cem Anos, pelo Cisma do Ocidente e pela peste negra que dizimou mais de um quinto da população européia. Foi nesse contexto de dor e consternação que cresceu o culto à Maria como “Mãe de Misericórdia”.
Feita esta recomposição antropológica e histórica, importa responder uma das mais intrigantes perguntas: o que faz Maria ser tão atraente à humanidade?
Nos últimos momentos de Jesus, ele reporta-se a Maria e a João dizendo (João 19:26,27): Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde àquela hora o discípulo a recebeu em sua casa.”
A fala decodificada pode ser entendida como a eterna ligação entre mãe e filhos: humanidade. Ao pé da cruz, Maria vivenciou com sublimidade a maior dor que se pode sentir: a mãe que perde um filho. Ali, sensíveis à dor de Maria, estabeleceu-se um laço empático inquebrável, atemporal.
O culto ao feminino sempre esteve presente na humanidade e muitos são os motivos e maior é a quantidade de explicações a respeito. Shinners, na obra The Cut of Mary and Popular Belief, pg. 163, assinala:
“Os psicólogos junguianos atribuem a atração de Maria à necessidade coletiva da sociedade de expressar as imagens femininas e maternas arquétipos do inconsciente coletivo. Os freudianos vêem no culto a sublimação dos impulsos edipianos masculinos. Todas essas teorias fracassam por várias razões.”. Muitos estudiosos assinalam que o culto à Maria é versátil, adaptável às necessidades de cada época.
Arrisco anotar, em complemento, que o modelo cultural civilizacional impôs-nos a supremacia quase absoluta dos valores masculinos, tais como competitividade, força, rigidez, racionalidade, individualismo, entre tantos outros, que, no final das contas, fez-nos órfãos, frágeis, carentes. Por isso, o sagrado feminino sempre exerceu fascínio e atraiu a massa, que se comporta como um filho vulnerável, muitas vezes errante, que procura colo, compreensão, proteção, amor maternal.
Há, contudo, no âmbito do próprio Catolicismo um cuidado com o culto Mariano. A alta cúria católica já temeu que o culto à Maria se tornasse mais importante que a Jesus. É comum, inclusive, membros da alta cúria católica ressaltarem a importância de Jesus quando falam de Maria. Por isso, uma das discussões mais acaloradas do Concílio do Vaticano II foi definir o papel de Maria no Cristianismo: “co-redentora” ou “medianeira” entre as criaturas e Deus. O título de “co-criadora” provém de manifestações papais, notadamente de Pio X e Pio XI, enquanto o de “medianeira” surgiu na Encíclica Ad Diem Illum, no século XV.
Após apaixonados debates e votação apertada, a Igreja decidiu moldar sua crença para combater o que entendia ser distorções no culto mariano e desenhou Maria como auxiliar do Cristo, mas dependente deste e dele subordinada. A Igreja considerou Jesus o único mediador. Mas o desenho passivo e subordinado de Maria causou insatisfação nos movimentos femininos que lutavam pela dignidade da mulher, justamente contra essa percepção patriarcal. A nova face de Maria só foi revista após movimentos internos na Igreja como o da Teologia da Libertação, liderado pelo Frei Leonardo Boff, que aproximou Maria dos excluídos, dando-lhe uma conotação mais social, mais próxima dos dramas do cotidiano. Maria consolidou-se como medianeira.
Firmava-se, assim, ainda mais os laços entre Maria e a massa. Só quem já pôde vivenciar festas como o Círio de Nazaré pode entender o que Maria representa ao povo. Maria assumiu, sociológica e psicologicamente, o papel de mãe, a mãe das mães.
Obs: No próximo artigo, finalizaremos abordando a missão espiritual de Maria, sob a ótica espírita.

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