terça-feira, setembro 28, 2010

EPIDEMIA DE INDIFERENÇA

“O que mais me incomoda não é o grito dos maus, é o silêncio das pessoas de bem.”
(Martin Luther King)




Estou há cerca de 15 anos convivendo com o voluntariado. Em 2000 o ano do voluntariado, vivi momentos de entusiasmo. As ONGs ficaram entupidas de pessoas querendo trabalhar, ajudar o próximo. Passaram-se 10 anos e muita coisa mudou. As ONG´s se profissionalizaram, umas para sugar inescrupulosamente dinheiro público, outras para prestarem excelentes serviços à sociedade. No meio do caminho ficaram as que não quiseram ou não puderam se profissionalizar.
Talvez seja o caso da maioria delas.
Destas, dependem milhares de pessoas não alcançadas pelo Estado e por outras ONG´s.
Essas ONG´s menores (antigas entidades beneficentes sem fins lucrativos) são formadas por pequenos grupos de cidadãos que querem apenas servir, praticar o bem desinteressadamente. Geralmente são pessoas muito ocupadas, que, entre quedas e escaladas, seguem com trabalhos sociais de pequeno e médio alcance, bancadas com verbas próprias, conseguidas a muito custo.
A sobrevivência deste tipo de atuação está cada vez mais difícil. Muitas estão definhando, em fase terminal. É comum encontrarmos seus fundadores em trabalhos solitários, hercúleos, evitando o fim próximo. Eles sabem que se pararem, aquelas crianças, adolescentes, idosos e doentes ficarão à míngua, desamparados.
É contraditório. Faltam voluntários, justamente quando há mais problemas.
Seguramente, em todos estes anos de voluntariado, nunca vi tanta gente desorientada, precisando de atenção e afeto, de um tipo de educação que não se dá na escola, de um tipo de amor que já não se consegue nas famílias desestruturadas.
E onde estão os voluntários?
Por que há uma evasão, sem precedentes, das pessoas de bem?
Sim, muitos buscam ONG´s bem estruturadas ou trabalham sozinhos. Mas isso não explica o que está acontecendo. Por que falo dos inertes, dos omissos e não dos que estão suando por um mundo melhor.
Existe quem diga que não sabe onde ajuda, mesmo que nunca tenham realmente procurado onde servir. Essa desculpa não cola. Há todo tipo de trabalho, em todos os horários e dias, esperando para ser assumido.
Há também a desbotada e arcaica desculpa de que não se sabe como ajudar. Ora, será que alguém não sabe ouvir, abraçar, servir um lanche, arrumar uma sala, imprimir uma poesia ou simplesmente orar? O que me choca é ouvir isso de quem tem algum grau de conhecimento e educação, quando em todo canto há crianças e jovens sem rumo, sem parâmetros e limites, reféns de mentes ignorantes.
Outros se furtam sob a alegação de que precisam devotar tempo à família, como se as crianças que crescem sem orientação e caminham para a criminalidade não fizessem parte da família universal, como se nossos filhos não estivessem ameaçados pelos bandidos forjados na nossa omissão.
Há quem ache já faz sua parte ao ser um cidadão de bem ou em simplesmente em não fazer o mal, como se isso não fosse o dever mínimo, a obrigação mais comezinha. Seguindo essa lógica, então é razoável se considerar um criminoso apenas por não querer fazer o bem?
Outros alegam que esperam que suas vidas fiquem mais tranqüilas, que as dificuldades passem, que o sofrimento bata em retirada, para só depois servir o próximo. Esses nunca vão fazer nada. Pois a vida é também isso: dificuldades, problemas, sofrimento. Por isso Chico Xavier afirmava: os que mais sofrem são os que ficam presos aos seus sofrimentos. Diminua o sofrimento alheio e o seu diminuirá.
A explicação mais óbvia e recorrente é a falta de tempo.
Ora, mas – como dito alhures – as atividades dessas pequenas ONG´s são mantidas por voluntários geralmente muito ocupados. Ademais, tempo não se tem, arranja-se.
Penso que a desculpa da falta de tempo é a capa de um problema bem mais grave, epidêmico, que é a indiferença.
Sim, vejo-a em todo lugar. Aparências já não a escondem. Vejo o amor mais na boca que na ação das pessoas. No máximo, amor solene apenas ao próximo que esteja bem próximo, inevitavelmente próximo. A vida tem sido regida pela lei do menor esforço. Nada que exija um grau mínimo de doação (e não falo de bens materiais), de renúncia, de sacrifício, cativa, comove, empolga. Antes pelo contrário, repele, afasta, desinteressa.
As pessoas promovem discursos éticos, debatem o futuro, criticam o mal, mas praticam uma ética vazia, desprovida de praticidade, de espírito de solidariedade.
Seriam estes os hipócritas pós-modernos que Jesus tanto combateu à sua época? Talvez sim. Ou não. É provável que muitos – quiçá a maioria – sejam apenas prisioneiros de seus mundinhos, tal como os prisioneiros da caverna de Platão.
É o fenômeno comportamental que o filósofo Gilles Lepovetsky denomina de crepúsculo do dever e de ética indolor.
As pessoas devotam o “pouco” tempo que lhes resta para navegar na internet, para desfrutar ilimitadamente do prazer, para curtir seguidas ressacas ou para se entregarem recorrentemente à paralisia do comodismo ou ao vício da preguiça. São exatamente os mesmos que – chocados e revoltados – reclamam das crianças nas ruas, do avanço dos crimes, da explosão da violência, da decadência de valores.
O pior aspecto desse fenômeno de embotamente espiritual não é exatamente não fazer, mas sim não se perceber.
As pessoas não se enxergam indiferentes.
É uma cegueira egóica, solipsista.
Acham que o só fato de ficaram perplexas com as maldades e injustiças que estão acontecendo é o suficiente para que não sejam consideradas indiferentes.
Peremptório engano.
O mundo não precisa de pessoas que fiquem apenas se lamentando e chorando na frente da TV. Precisa de gente para suar a camisa, para acolher milhares de pessoas que seguem desamparadas, sem orientação e esperança.
De bem intencionados o Umbral está lotado.
É preciso despertar!
Vivemos um tempo difícil.
Hugo Assmann e Jung Mo Sung advertem:

“Hoje, porém, estamos diante da primeira crise civilizatória com amplidão realmente planetária. E ela é terrivelmente desproporcional. Há vários bolsões onde as “baixas sociais” se intensificam. E um pouco por toda parte reina uma gélida indiferença.”

Por isso, cada mão a menos faz falta. Muita falta.
A indiferença é um câncer moral, que vai destruindo nossa humanidade, deixando oco nosso Espírito, vulnerável ao vazio existencial. Enfermidade traiçoeira, assintomática, que se revela sutilmente na nossa incapacidade de amar com ações.
Afinal, que amor é esse que não pode ser compartilhado?
Cabe perguntar: vivemos em um mundo de ódio ou de indiferença?
Fiquemos, pois, com o irretocável veredicto do brilhante escritor Érico Veríssimo: o oposto do amor não é o ódio, é a indiferença.


No Twitter:  @DenisGleyce

1. ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung Mo. Competência e Sensibilidade Solidária: educar para esperança – Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

Um comentário:

Euripesca disse...
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